quarta-feira, 28 de novembro de 2007

FESTIVAL DE BRASILIA

Nas palavras de nosso correspondente no festival de Brasília: BATISTA FERRAZ

(SOBRE A SESSÃO)



Ontem passou o filme, aqui em Brasilia, o público gostou de verdade, assobios e palmas, nada de estrondoso porque também não é filme de estrondo. A matilha vai indo embora, levando a lenha num pacto silencioso de travessia. É o filme que tem o som mais quietinho, burburinho de molécula... muito barulho nos filmes aqui, às vezes é triste Brasília sem calçadas nem pedestres, mas quando se escapa da cidade planejada, em linha reta, cai-se na amplidão do cerrado, terra vermelha como da comunitária e cachoeiras, olhos d´água.
Depois da sessão vieram pessoas, se disseram emocionadas com o filme, com as palavras que uniram naquele palco, Guile, Gui, Julia, Laura e aquele montão de gente. Guile ofereceu a sessão aos ciganos e a Julia, de longe. Pessoas que cresceram no Nordeste ficaram realmente balançadas, imagens de infância desfilando em rebanho, em vida.
Um dos jurados, ator, nordestino, bonitos olhos de rio, esqueceu da ética e apertou muito firme a mão de Guile, olhou no olho e parecia verdadeiramente agradecido.
O filme é muito importante nessa cidade. Aqui os fluxos tentam ser contidos, não existem pobres morando no plano piloto, não existem ciganos... então os fluxos vão para longe, nas beiras das minas de água, em lugares lindos onde seu Francisco também pararia. Todos dizem que é perigoso ir até a esquina, têm medo das fronteiras... e quantos belos sorrisos também.
Preciso ir pro debate, te escrevo depois.

(SOBRE O DEBATE)



Ai pela internet quem quiser procurar pode achar algumas palavras mal escritas ou ouvidos que não querem ouvir, boca pra repetir, reproduzir e assim ao longo... O Glauber está na moda aqui, tem filme do Joel Pizzini sobre ele, e quanto o coração desse homem também não bateu, como os nossos? Ele encontrou um jeito de não parar, segundo o Calil entrou num beco sem saída, talvez por não ter ido aos atalhos que levam aos rios, ao frescor dos outros assoprando nossa cara.
A mãe do Glauber está aqui, também olhou no olho de Guile com seu sorriso de vó e disse : "Andar de jegue é bom!".
Um radialista segurou também Guile pelo braço e disse da importância do filme. Disse que tinha certeza que a gente era Cigano, queria saber sobre você, sobre a Bósnia, sobre os projetos.
O debate :
O primeiro cara que começou a falar era um careca atrofiado, crítico também, engolindo as palavras, mascando azedume, também era nordestino, e disse que ficou extremamente incomodado com as crianças fazendo macaquices, ficou incomodado com os "jumentos" aparecendo o tempo todo, disse que qualquer criança faz isso pra câmera, é o primeiro impulso.
O Gui estava vibrante e Guile, bem calmo, deram belas respostas, sem pressa sem agressão, e disseram sobre as histórias que contavam às crianças, as estórias que elas contavam... O cara não parecia ouvir. É bem provável que não tenha vivido essa liberdade no nordeste dele, não montou em jegue, não saiu pra rua com medo de ser roubado pelo cigano.
Então um homem bonito, ar de água corrente, cabelos para trás, testa elegante, olhar com dois pontos de brilho, começou a falar. Nos arrepiamos inteiros. Ele disse que foi encantamento puro, ficou enfeitiçado do começo ao fim, com vontade de estar naquela fogueira, de comer aquela galinha, erguer aquelas crianças aos céus, ouvir os conselhos do sábio Francisco... nunca vi alguém falando tão bonito do filme. Sentiu tudo, tudo que já passava por ele e encontrou caminhos para passar pelo filme, mudar de natureza, fazer novo espaço-tempo. Não analisou nada, foi convidado, enfeitiçado. O Gui sabia quem era ele, eu não. Edgar Navarro, cineasta Baiano das antigas, não sei se vimos filmes dele, mas é coisa boa. Ele falou do Super 8, do Som, da Bahia, dos ciganos da infância dele desfilando em vida na tela... eu falei que nós éramos os meninos, em infância tardia e presente, correndo atrás do comboio cigano e que desta vez, nossos pais não iriam pedir pra gente voltar, ao contrário, diriam vão meus amores, vão correndo e voltem com cobre e poeira na pele.
A mediadora do debate era uma tapada, disse que os ciganos são aculturados porque cantavam música sertaneja. Então eu deslanchei, com calma, dizendo que "aculturação" só no ponto de vista do sedentário, de quem vê o rio correr estando na margem, não se deixa levar pelas águas que correm. Disse que não existe música cigana, que ela pode procurar uma música "pura" e não vai achar. O que existe é uma musicalidade potente, correndo no sangue desse povo, fazendo suas vozes e instrumentos vibrar nas músicas dos lugares por onde passam (PORQUE NÃO PASSAM SEM SE DEIXAR MODIFICAR SIM PELO ENTORNO, SEM MUDAR DE NATUREZA NOS ENCONTROS NUM DUPLO PODER DE AFETAR E SER AFETADO) só que vibrando, por dentro destas músicas (forró, tango, Jazz) velocidades e lentidões de quem está sempre dizendo adeus o chegando de fora. Acabam, muitas vezes, tocando até melhor que a população local, desenraizam a música, sem ignorá-la, sem esmagá-la, porque sabem também senti-la no coração, com sinceridade na voz e no olhar.
Certo. terminado o debate veio uma senhora, vestido florido alegre, cabelos brancos tipo a Marilda, uns olhos parecidos com os do Batista. Ela disse : "Olha, eu não falei nada porque não sei falar assim, na frente de tanta gente. Mas foi o filme mais lindo que eu vi nesses tempos, que mais disse e mostrou o que eu precisava ouvir". Ela mora na chapada dos veadeiros, se afastou um pouco da capital, medita sim, se prepara nas águas sim e demonstrava nos olhos a alegria com que vivia a idade que tinha. A maneira como encontrava, com a idade que tinha, com as formas que possuía, de vibrar intensidades de aurora, fluxo de cachoeira.
Sim, falaram no debate da precariedade do filme. A Verinha levantou a mão e disse que é o trabalho mais elaborado do festival. Só que é um trabalho de molécula, não de estrondo.
Julia, as pessoas têm medo sim de sair da terra natal, ou de procurar uma terra natal em outro lugar, conectar as duas, traçar rotas, mapas móveis sobre um território fixo. Tenho lido os textos do Deleuze sobre os nômades, a história sempre fez vista grossa para sua importância, suas espadas, suas descobertas, seus remédios. A territorialização é confortável, meu bem. Brasília é a territorialização projetada. As fugas aqui têm de ser operadas com muita coragem, tudo conspira para ficar como está. Esta cidade foi projetada para abrigar o poder. E quanta gente linda, quantas águas correntes a gente vê se pega um ônibus, sai do plano piloto, e vai na justamente na direção em que pessoas do festival ou funcionários do hotel dizem ser perigosa.
Não importa o que digam, temos que andar. Continuamos indo, não é mesmo?
-O QUE OS CIGANOS ENSINAM DE MELHOR?
-Nos vemos do outro lado, rapaz...

3 comentários:

Anônimo disse...

Relato digno de um conto... poético e cheio de intensidade... Muito bom esse relato. Estou muito ansioso por ver o filme. Mas vai um detalhe curioso: Brasília foi construída por um cigano. Isso mesmo JK era descendente de ciganos Russos... é o destino. Sem Brasília, não haveria Festival de Brasília e eu poderia ter ficado sem ver Café com Leite....

beijos e obrigado pelos belos filmes...

laura disse...

belíssimo texto. me mocionei, feliz com a vida própria do filme, e com saudades de meus companheiros de estrada. laura

Anônimo disse...

Eta coisa mais linda do universo...



(Eta carta mais linda do universo!)